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24 de Abril de 2024

Aspectos antidemocráticos do Colégio Eleitoral na Constituição Americana

Como a questão do voto popular direto e do voto colegiado fragiliza a democracia dos Estados Unidos da América

há 5 anos


Há alguns dias, pude publicar aqui parcela de um trabalho de pesquisa que venho desenvolvendo por algum tempo junto do Núcleo de Estudos de Direito Constitucional - que integra o programa de Mestrado em Direito da Federal do Maranhão.

O estudo em questão é a continuação de uma série de análises sobre a Constituição Americana, especialmente sobre aspectos de natureza institucional, uma vez que minha paixão maior no constitucionalismo é o estudo das Instituições do Sistema de Justiça.

Desde a última publicação sobre o assunto, pude tecer algumas reflexões pelas quais acredito ser extremamente necessário refletir os impactos negativos do Colégio Eleitoral no regime democrático americano, bem como alternativas viáveis para a superação desta que é atualmente uma clara (e renitente) falha institucional.

Pois então.

O sistema eleitoral por lá vigente, assegura a existência de um chamado Colégio de Eleitores. Esta instituição, originária das democracias representativas mais rudimentares - onde há grandes dificuldades físicas de organização do pleito eleitoral (votação/apuração/síntese/proclamação), basicamente exerce um crivo delegado na escolha dos representantes aos postos de Presidente e Vice-Presidente da República.

Trocando em miúdos, esta instituição é composta de delegados dos vários distritos eleitorais (representados pelos Estados-membro da federação) que são escolhidos a nível local - até que, em certo momento, reúnem-se entre si e destinam seus votos ao candidato de sua escolha.

Conforme se coteja do documento de independência, os constituintes repeliram o despotismo britânico, e pretendiam estabelecer na nova República, um regime pautado nas limitações do poder de estado, e também, nas limitações do poder popular.

Significa dizer que os autores pretenderam adotar instituições e mecanismos políticos encartados em uma constituição rígida, com clara repartição de competências e definição de direitos básicos inalienáveis, “com o fito de garantir uma organização política na qual a integridade de seus cidadãos pudesse ser minimamente assegurada” (GUARNIER , 1991).

Neste aspecto é que o colégio eleitoral pode ser compreendido como um interessante mecanismo de proteção das minorias políticas.

É que os constituintes de 1787 pretendiam a todo custo afastar a figura do chefe de estado das influências populares. Significar dizer, de outro modo, que os Pais Fundadores almejavam repelir qualquer espécie de populismo da figura do presidente, que, segundo esperavam, deveria ser a mais técnica e sóbria possível haja vista a posição central que ocupa na República.

Assim é que constituir um grupo seleto de cidadãos sensatos, ilustres e virtuosos pareceu ser a alternativa mais racional a fim de evitar que o Presidente se tornasse um mero mandatário das massas popularescas, facilmente manipuláveis por interesses escusos.

Segundo o autor federalista, a eleição através de delegados colegiados seria “a única forma de evitar tumultos e o caos no processo eleitoral, de sorte que ainda, pelo reduzido número de pessoas dele integrantes, ter-se-ia maior facilidade de acesso à informação”. (HAMILTON, A; MADISON, J; JAY, J, 2005)

De acordo com tal perspectiva, o colegiado evitaria a eleição de aventureiros e de pessoas comprometidas com o interesse de outros povos, na medida em que a escolha do presidente seria depurada pelo civismo e tecnicismo.

Neste aspecto é que a Convenção de 1787 aceitou a proposta do colégio eleitoral, definindo que “cada estado designará, da maneira que sua assembleia legislativa possa orientar, um número de eleitores colegiados igual ao número total de senadores e deputados a que o estado tenha direito no senado” (FARRAND, Max. 1966, p. 497).

Com esta medida, em apertada síntese, os Autores conseguiram fulminar, em primeira análise, a possibilidade de tirania da maioria (mob rule), e ainda promover a construção de um sistema híbrido de coalização entre os interesses partidários, possibilitando, a reboque, o poder de influência de estados de menor população no cenário nacional.

Ocorre que apesar desta intenção inicial, o Colégio Eleitoral apresenta defeitos gravíssimos ao regime democrático americano.

Um destes defeitos reside na questão posta entre votos populares e votos colegiados. É que o sistema americano, em que pese ser baseado na eleição indireta para Presidente e Vice-Presidente, como visto, operacionalizada pelo colégio eleitoral, admite ainda a contagem de votos populares.

Neste aspecto, tem-se que em várias ocasiões, candidatos a Presidente ou Vice-Presidente podem receber a maioria absoluta de votos populares de todos os cinquenta e um estados, e, ainda assim, não se elegerem. Posto que o total de 538 (quinhentos e trinta e oito) votos do colégio eleitoral são distribuídos irregularmente entre todos os estados na medida da sua representação no congresso[1], essencialmente, os candidatos à presidência, disputam para atingir a combinação de estados suficientes para alcançar, pelo menos, metade mais um dos votos do colégio de eleitores.

Isto é, a cada pleito, os candidatos simplesmente precisam alcançar, pelo menos, 270 (duzentos e setenta) votos do colégio eleitoral. Da forma como posta, a estrutura colegiada permitiu em várias ocasiões que candidatos derrotados no voto popular, tornassem-se presidentes legitimamente.

O exemplo mais controverso desta falha democrática se apresentou nas eleições de 1876. A crise começou quando o democrata Samuel J. Tilden obteve 51% (cinquenta e um por cento) dos votos populares, e ainda assim, perdeu para o oponente Rutherford Hayes no colégio eleitoral.

Esta tendência que pode parecer pontual, em verdade, “já aconteceu em pelo menos 19 (dezenove) das eleições presidenciais” (DAHL, 2015, p. 79). Isso revela que uma a cada três eleições presidenciais foi marcada pela entrega do posto mais elevado da república, a um candidato escolhido pela minoria dos eleitores votantes.

Como exemplo recente desta distorção, destaca-se a eleição presidencial dos anos 2000.

Nela, o candidato republicano George W. Bush – então governador do estado do Texas –, disputou os votos do colégio eleitoral com o democrata Al gore.

Apesar de ter o candidato democrata recebido um total de 51.003,926 (cinquenta e um milhões três mil novecentos e vinte e seis) votos, cerca de 48,38% (quarenta e oito inteiros e trinta e oito centésimos por cento) dos votantes, contra 50.460,110 (cinquenta milhões quatrocentos e sessenta mil cento e dez) votos de George W. Bush, “Gore perdeu as eleições presidenciais no colégio de eleitores por uma diferença de apenas 5 (cinco) votos colegiados” (UNITED STATES OF AMERICA, 2000).[2]

A derrota de Gore, na ocasião, se deu pelo fato de que o republicano Bush conseguiu reunir, em sua cartela eleitoral, dois estados chave, e ainda, boa parte dos estados de média expressão votante das regiões centro-sul-leste, centro-sul-oeste, e região montanhosa do oeste.

Ao assegurar assim os estados do Texas (32 votos do colégio eleitoral), Florida (25 votos), Ohio (21 votos), e North Carolina (14 votos), George W. Bush obteve, de uma só vez, 92 (noventa e dois) votos dos estados-chave, distribuindo os demais 179 (cento e setenta e nove) votos por estados de menor porte eleitoral.

Enquanto que, noutro lado, Al gore obteve nos estados de maior expressão votante, os votos da California (54 votos), New York (33 votos), Pennsylvania (23 votos), Illinois (22 votos), e Michigan (18 votos), totalizando assim, 150 (cento e cinquenta) votos dos estados-chave, distribuindo os demais 116 (cento e dezesseis) votos em pouco mais que 15 (quinze) estados.

Por exemplificativo, outro controverso episódio do colégio eleitoral em eleger candidatos derrotados no voto popular aconteceu nas eleições de 2016.

De efeito, afora os escândalos da interferência russa na última eleição americana – que, pelas investigações desenvolvidas até o presente momento, teria sido operacionalizada por meio da participação sistemática de oficiais do governo Putin mediante a criação de contas e perfis falsos em redes sociais destinados a insuflar discursos de ódio e notícias falsas (fake news) contra a candidata democrata oponente[3], as eleições de 2016 são o mais recente demonstrativo do caráter antidemocrático do colégio eleitoral.

Como se verificou, a 58ª eleição presidencial foi marcada por mais uma virada do colégio eleitoral. No referido pleito, o republicano Donald J. Trump, até então nunca eleito a qualquer posto de governo, disputou os votos do colégio eleitoral com a democrata Hillary R. Clinton, 67ª Secretária de Estado do Estados Unidos.

Muito aproximadamente do ocorrido no pleito de 2000, apesar de ter a candidata democrata recebido um total de 65.853,516 (sessenta e cinco milhões oitocentos e cinquenta e três mil quinhentos e dezesseis) votos, cerca de 48,20% (quarenta e oito inteiros e vinte centésimos por cento) dos votantes, contra os 62.984,825 (sessenta e dois milhões novecentos e oitenta e quatro mil oitocentos e vinte e cinco) votos de Donald Trump, “Clinton perdeu as eleições presidenciais no colégio de eleitores por uma diferença de 77 (setenta e sete) votos colegiados”. (UNITED STATES OF AMERICA, 2016a).

Diante da expressividade de votos populares com que a ex-secretária de estado perdeu as eleições, um novo debate se acirrou acerca da manutenção ou não do colégio eleitoral sobretudo quando cotejado diante da impopularidade recorde[4] em pouco mais de um ano e meio de mandato, do hoje presidente Donald Trump[5].

O desenho institucional do colégio eleitoral da forma como analisado, levado às consequências extremas, revela a possibilidade plausível de ter-se eleito presidente um (a) candidato (a) que não tenha recebido, sequer, um único voto em 39 (trinta e nove) estados, mas que, com a combinação precisa de estados-chaves, consiga obter a maioria simples dos votos colegiados necessários para sua consagração.

Por exemplo, se realizada a combinação de votos “ideal”, o (a) candidato (a) pode se tornar presidente apenas obtendo os votos colegiados dos estados da California, New York, Texas, Florida, Pennsylvania, Illinois, Ohio, Michigan, New Jersey, North Carolina, Georgia e Virginia.

Isto é, com o arranjo cirúrgico de votos de estados de tradição democrata e republicana, a população de apenas 11 (onze) estados, poderia definir o destino de toda federação.

Por este motivo, surge o terceiro grande vício democrático do sistema de colégio eleitoral.

Haja vista que cada estado tem direito a contar com um número de membros do colégio eleitoral igual ao número de senadores e deputados, os candidatos tendem a disputar os votos com maior vigor nos estados “decisivos”, que apresentam uma expectativa razoável de pender para um lado ou para o outro nas eleições. Daí que estados-chave obtém maior atenção dos candidatos do que estados de menor porte eleitoral.

Esta constatação ainda revela o que poderia ser considerado como o quarto vício democrático intrínseco ao colégio eleitoral: a desigualdade do peso dos votos do colégio eleitoral por estado.

Tomando-se como escopo o censo de 2000, melhor identifica Robert Dahl (2015, p. 80):

(...) enquanto o número de residentes por cada eleitor colegiado vai de 165 mil a pouco mais de 300 mil nos 10 estados menores, ele vai, nos 10 estados maiores, de 568 mil na Geórgia, a 682 mil, na Califórnia. Cada um dos 10 estados menores escolhe duas a três vezes mais membros do colégio eleitoral do que faria se os membros colegiados fossem eleitos proporcionalmente.

Essa desigualdade insuperável tem um efeito perverso sobre a democracia americana, uma vez que, aliado a facultatividade do voto e a estrutura colegiada indireta de contagem de votos, existe um claro desincentivo ao voto dos eleitores residentes de estados chave historicamente democratas ou republicanos.

Significa dizer, de outro modo, que em estados como New York, California, ou Pennsylvania – historicamente democratas[6], um eleitor republicano pode se sentir desestimulado a votar, posto que a maioria simples dos eleitores daquele estado escolherá, muito certamente, a chapa inteira de votos democratas para o colégio eleitoral.

Sob este aspecto, observa-se que o colégio eleitoral apresenta graves falhas que afetam diretamente a natureza democrática da constituição americana, posto que além de permitir que candidatos impopulares alcancem o posto mais alto do executivo, referido método colegiado desestimula sistematicamente o voto em estados “seguros”, criando ainda desigualdades alarmantes entre o peso dos votos de residentes de estados de pequena e grande densidade populacional.


Siga-me: @pedro.moreira.viana


[1] O Censo demográfico é realizado a cada 10 anos nos EUA. A partir dos resultados do censo, os estados podem ganhar ou perder representatividade de votos no colégio eleitoral, eis que sua participação, é diretamente condicionada ao número de habitantes. O último censo democrático, realizado em 2010, estabeleceu a seguinte divisão de votos do colégio eleitoral por estado da federação, incluído aí o Distrito de Colúmbia: Washington 12 votos, Oregon 7 votos, California 55 votos, Nevada 6 votos, Idaho 4 votos, Arizona 11 votos, Utah 6 votos, Montanna 3 votos, Wyoming 3 votos, Colorado 9 votos, New Mexico 5 votos, Texas 38 votos, Oklahoma 7 votos, Kansas 6 votos, Nebraska 5 votos, South Dakota 3 votos, North Dakota 3 votos, Minnesota 10 votos, Iowa 6 votos, Missouri 10 votos, Arkansas 6 votos, Louisiana 8 votos, Wisconsin 10 votos, Illinois 20 votos, Indiana 11 votos, Ohio 18 votos, Michigan 16 votos, Mississipi 6 votos, Alabama 9 votos, Georgia 16 votos, Florida 19 votos, South Carolina 9 votos, North Carolina 15 votos, Tennessee 11 votos, Kentuckty 8 votos, Virginia 13 votos, West Virginia 5 votos, Maryland 10 votos, Washington DC 3 votos, Delaware 3 votos, Pennsylvania 20 votos, New Jersey 14 votos, Rhode Island 4 votos, New York 29 votos, Connecticut 7 votos, Massachusetts 12 votos, Vermont 3 votos, New Hampshire 4 votos, Maine 4 votos, Alaska 3 votos, Hawaii 4 votos.

[2] Bush 271 votos colegiados; Al gore 266 votos colegiados. Dados do Federal Election Comission (USA) 2000 OFFICIAL PRESIDENTIAL GENERAL ELECTION RESULTS.

[3] Veja: https://www.washingtonpost.com/world/national-security/top-us-cyber-officials-russia-posesamajor-t...

[4] De acordo com Gallup, a taxa de aprovação do governo Trump, durante o primeiro ano do mandato, oscilou entre 35% e 45%, a menor desde os sete últimos presidentes. In: http://time.com/5103776/donald-trump-approval-rating-graph/.

[5] Em deferência a mais contemporânea pesquisa de popularidade conduzida pela Gallup, cumpre observar que o menor índice de aprovação do presidente Donald J. Trump atingiu a marca de 35% no período de 11-17 de dezembro de 2017. Contudo, a Gallup informa que, mais recentemente, a aprovação do presidente Donald J. Trump atingiu a marca de 41% no período de 30 de julho a 5 de agosto de 2018. O índice revela que a aprovação do atual presidente, para este período de mandato (7º trimestre) é historicamente baixa se comparada ao mesmo tempo de mandato dos últimos presidentes, e.g. Obama (44%, Agosto de 2010), George W.Bush (67% Agosto de 2002), Clinton (41% Agosto de 1994), George H. W. Bush (75% Agosto de 1990). Disponível em: https://news.gallup.com/poll/203198presidential-approval-ratings-donald-trump.aspx. Acesso em: 09/08/2018.

[6] Existem muitos outros estados considerados “seguros” por ambos os partidos. Estes estados são aqueles que, nas últimas quatro eleições votaram sempre azul, ou sempre vermelho. Por exemplo, são estados tradicionalmente democratas, o Oregon, Maryland, Michigan e Massachusetts. Noutro lado, são estados tradicionalmente republicanos, Mississipi, Alabama, Kansas e Idaho. Existem ainda os chamados “swing states”. Estes, por seu turno, são os estados que durante as quatro últimas eleições presidenciais, tem oscilado em favorecer candidatos democratas e republicanos. Como exemplo, considerando-se as eleições de 2016, Ohio e Flórida, são estados que tanto contaram votos para republicanos quanto para democratas.

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